Lilith e suas criaturas: tradução, queeridade, vingança, futuro e tarot
prefácio completo do nosso novo lançamento em pré-venda, por Mercuria
Desde o começo da demonia editora, eu tinha o livro ‘Lilith’s Demons’ de Julie Enszer em mente, já que todo imaginário que rodeia Lilith já se encontrava presente. A escolha do nome foi diretamente inspirada na sua imagem e sua relação com a insubmissão – o que se encaixava perfeitamente no projeto de publicar pessoas dissidentes. Em alguns textos da mitologia judaica1, Lilith foi a primeira mulher criada por deus, não da costela de Adão mas da terra. Por ter sido criada da mesma matéria, ela se recusa a, durante o ato sexual, se deitar por baixo dele e se encaixar em uma posição subjetiva inferior e submissa. A partir dessa recusa, Lilith profere o inefável nome de deus e foge para o mar vermelho. Em outros textos e mitologias ainda mais antigas, Lilith é uma denominação para demônios femininos noturnos, sedutores e malignos que ameaçam bebês, homens e mulheres no momento do parto. Em interpretações mais recentes, estima-se que Lilith era a própria serpente que surge no jardim e oferece o fruto proibido para Eva.
Desde o momento que encontrei as diversas interpretações místicas de Lilith e sua história, a entendi principalmente como a primeira representação do desvio, e por consequência, a primeira representação do mal a partir da perspectiva da normatividade. Lilith, além de ser um perigo, é a representação do desejo e da sexualidade selvagem e não dócil, que pode ter o potencial de fazer ruir o mundo patriarcal. Dentro dessa concepção de Lilith como uma criatura que ameaça a família, engana os homens, e prejudica as mulheres que aceitam o papel tradicional, sempre me foi evidente que ela pode ser colocada em paralelo com a maneira que as pessoas dissidentes, pessoas trans e mulheres que desafiam os papéis impostos a elas, são vistas pela sociedade cisheteronormativa.
Essa concepção aparenta não ter sido somente ecoada nos meus pensamentos, mas também nos de Julie Enszer ao escrever esse livro, que é dividido em três partes. Na primeira, Lilith fala em primeira pessoa sobre o nascimento de suas criaturas. Na segunda, são as criaturas que descrevem os seus malfeitos pelo mundo a mando de Lilith. Na terceira, são as criações que descrevem a sua admiração por ela, tão grande a ponto de ‘fazer querer cair’.
No início da tradução, já me vi com o desafio de traduzir as palavras ‘demons’ (demônios) e ‘angels’ (anjos). Foi um desafio porque eu queria fugir da marcação linguística, cultural, e imagética que as palavras demônios e anjos tem no Brasil, que é tão determinada pelo cristianismo. Me pareceu mais benéfico para o projeto a escolha de palavras alternativas, substituindo demônios por criaturas e anjos por criações. A palavra criatura foi escolhida por ser um substantivo feminino, sem flexão para o masculino e com conotação em geral negativa, o que se encaixava com o fato de todas as criaturas maléficas nascidas de Lilith terem nomes judaicos femininos; além de não serem anjos caídos, mas sim crias, geradas a partir do seu próprio corpo. Já a palavra criação, também é um substantivo feminino, (o que foge da palavra anjo que não tem flexão feminina) mas com conotação positiva, referente ao ato de criar; o que pareceu apropriado pelo fato dos anjos serem parte do criacionismo divino. Vi como pertinente insistir nesses aspectos, até mesmo pelo fato de que ao escolher as palavras ‘demons’ e ‘angels’ a autora não demarcou prontamente o gênero, já que em inglês, os substantivos não tem gênero gramatical demarcado como no portugues. É só ao adentrar o livro, que percebemos que os anjos e os demônios se encaixam em pronomes femininos ou neutros. Também foi do meu interesse usar dois substantivos com uma mesma raiz etimológica, para evidenciar a proximidade entre as criaturas e as criações nesse livro. De maneira paralela, fiz a escolha de utilizar pronomes neutros para me referir ao coletivo de criações, pensando uma brincadeira subversiva com a ideia de anjos que têm seu sexo desconhecido, sejam eles biblicamente precisos ou não. Se o sexo dos anjos é uma incognita ou não se aplica, então é possivel que elus vivam fora do genero, se tornando um possivel devir não binarie.
O pronome neutro foi usado para o coletivo das criações, mas ao me referir à Semangelof, eu mantive o pronome feminino utilizado pela autora, o que evidencia o caráter sáfico e queer da sua relação com Lilith. Caráter esse, que é amplamente intencional no livro; desde a citação de ‘The coming of Lilith’ de Judith Plaskow, que narra um romance entre Lilith e Eva, à sua tentativa de mostrar às mulheres que existe mais no mundo do que centrar homens em suas vidas, ou de salvá-las enquanto ainda há tempo, como no poema Sarai:
Aqui está ela, em pleno
florescer da mulheridade,
ainda não completamente confiante
no que ela sabe,
[...]
Então eu planto as sementes
da dúvida; eu sugiro
que existem outras vidas,
papéis maiores que o de mãe,
uma vida fora da família imaginada.
Eu sussurro, resista. resista.
[...]
Eu a encorajo,
viva fora do que os outros esperam de você,
do que você aprendeu a acreditar.
ela me escuta.
Ela sabe:
minha sabedoria é anciã.
Essa tentativa também se dá pela via da vingança, como no poema Milaika: ela prospera no seu exército imaginado/ de divorciadas/ de mulheres sozinhas/ de mulheres insatisfeitas/ de mulheres desejantes/ Lilith promete: mais. mais.’. Essa vingança, em uma primeira leitura, pode parecer mal direcionada, mas em uma análise atenta é possível entender que Lilith não está punindo mulheres por serem mulheres, como fazem os homens, mas sim punindo mulheres que contribuem para o sistema de opressão ao centrar homens em suas vidas e trair umas as outras. É possível ver isso no poema Elisheva, que narra a morte de uma mulher pelas mãos de uma criatura: ‘Sua morte trará dor/ como ela infligiu nas outras/ Lilith despreza deslealdade/ entre mulheres’ ou então no poema Hepzibah: (essa mulher) mais devotada ao seu namorado/ indolente do que à suas irmãs./Defendendo suas ações/ como honra, cega perante a dor/ das outras.
Lilith porém, não é cega para a responsabilidade que os homens têm nesse sofrimento, mas é como se ela já não esperasse mais nada deles. Isso pode ser observado sutilmente no poema Ophira na qual ela cita a personagem de Hamlet: há muita maldade na loucura/ então, quando eu/ chego no mundo/ ela grita,/ pergunte a Shakespeare/ sobre Ophelia!; personagem essa que, por conta das suas relações com os homens da história que a mantém submissa à suas decisões, que ora a vem de maneira infantilizada e ignorante, ora sexualizada e impura, se deprime, é levada à loucura e à morte.
Apesar disso, não necessariamente a morte ou o sofrimento dessas mulheres é um fim em si mesmo. Eles podem ser, além de uma punição, uma possível fuga dada por Lilith do controle patriarcal. Como no tarot, em que é preciso passar pelo arcano da torre para chegar ao arcano da estrela, ou seja, caminhar pela destruição, dor, ruína, para chegar a um lugar de liberdade, esperança e novas possibilidades — sair da prisão que era a torre2, recebendo revelações que permitem um transbordamento. Na torre existe uma energia que está ávida para ser liberta, que espera o desmoronamento para se expandir. A quebra se torna força incapturável, fluída. Esse percurso acontece na própria história de Lilith, que ao desestabilizar o jardim do éden por não se curvar à Adão, e perder sua proteção divina, se emancipa, se tornando ao mesmo tempo subalterna e poderosa. Podemos observar isso no poema ‘após a queda’, que relata como a insubordinação soberana de Lilith chega até os anjos, em especial Senoy, Sansenoy, e Semangelof, que são no misticismo judaico os anjos responsáveis por proteger os recém nascidos de Lilith:
Às vezes as criações descem
para ouvir histórias sobre Lilith:
como ela sobrevive,
mais recentemente, como ela prospera.
As criações passam apenas parte de uma hora
ouvindo as tramas das criaturas,
se deliciando em sua maldade,
na sua provocação
das convenções
do que é esperado.
Criações gostam das histórias
das provocações de Lilith,
elus prestam deferencia
à sua raiva legítima,
sua virtude vulgar,
como ela permanece,
como ela sobrevive
através dos séculos.
Essa vingança de Lilith que passa das ruinas para a liberdade, me lembra esse trecho do manifesto Bashbak! ultraviolencia queer:
‘Muitas pessoas culpam queers pelo declínio desta sociedade — nos orgulhamos disso. Algumas acreditam que pretendemos esmigalhar essa civilização e seu tecido moral — elas acertaram. Somos frequentemente descrites como depravades, decadentes e revoltantes — mas ah, não viram nada ainda.’
Lilith, de certa forma, pode ser o exemplo mais antigo da posição que pessoas dissidentes ocupam; um exemplo de independência, rebeldia, recusa. Lilith é TRANStornar o mundo heterocis. Lilith mostra que sempre estivemos aqui e sempre estaremos. Lilith brilha como a estrela e não está sozinha. Em seu jardim, separada dos homens e de deus, ela constrói um futuro possível, uma calmaria após a tempestade, uma esperança de um novo mundo, como vemos no último poema do livro, Lilim: ‘Essas lilim, criaturas/ como Lilith, bruxas e/ trapaceiras, são uma família/ que perdura. No jardim/ de Lillith, demônias e anjes,/ criaturas e criações vivem em paz’. No vazio deixado por deus, ela prospera. Como diz Semangelof,
Se D’us estivesse aqui
ele a destruiria,
mas em sua ausência,
nós somos como humanos,
tropeçando em meio à vida.
Exceto Lilith.
Ela permanece luminosa.
sua própria guia.
Ela tem a certeza
do divino.
Ela me faz querer cair.
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mercuria
Aqui minha intenção é fazer uma pequena introdução em algumas maneiras que Lilith é retratada, mas existem diversos mitos sobre sua origem visto que ela está presente em múltiplas mitologias, que datam desde o início dos tempos. Apesar disso, uma característica é comum: ela sempre retrata uma força contrária, um desvio, renegada e rejeitada.
Curiosamente, a torre no tarot em algumas interpretações também pode ser ‘a casa de deus’.