Acho que eu já usei essa frase aqui antes, mas escrever é difícil. Juntar palavras para formar imagens e afetar os sentidos de outre é uma tarefa que beira o absurdo. Fazer isso com regularidade, então, é um desafio ainda maior. É assim que eu introduzo essa coluna, com uma justificativa para a irregularidade das últimas publicações. Trabalho demais, leio de menos. Duas coisas que vão mal com a ideia de escrever.
Mas, para mim, a parte mais difícil de todas é a de pensar sobre o que escrever. O que pode ser interessante ou relevante o suficiente para que alguém queira ler a respeito? Será que as pessoas vão parar o que estão fazendo- mesmo que seja só um doom scrolling- pra ler meia dúzia de coisas que eu cismei em escrever?
Claro, que nem sempre a pessoa que lê é levada em conta. Às vezes eu escolho um tema simplesmente por estar suficientemente obcecada com ele. Algo me parece inescapável, permeia tudo que eu penso, todas as coisas que eu vejo e leio são experimentadas à luz dessa obsessão.
Particularmente, eu prefiro essa literatura feita a partir de obsessões. A insistência quase delirante de um tema, dobrando o mundo à sua imagem e semelhança. Desse modo, coisas interessantíssimas podem surgir.
E a minha obsessão mais recente é o tempo. Quero entender o tempo. Quero ser capaz de enxergá-lo para além da linearidade com a qual ele normalmente é lido. O tempo é mais complexo que isso. O tempo sequer é uma coisa só. E ele gera muitas coisas. Ideias como utopia, catástrofe, trauma, revolução e redenção estão todas entrelaçadas com o conceito de tempo.
Outro dia assisti o filme “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”: a ideia de linhas de tempo alternativas é muito interessante. Pensar que cada segundo que passa pode gerar múltiplas realidades, múltiplas temporalidades nas quais as coisas se desenrolam de maneiras completamente distintas, é ao mesmo tempo desesperador e reconfortante. Afinal, em algum lugar eu fiz as coisas de maneira diferente: eu não desisti daquele emprego, eu disse outra coisa naquela briga, eu não me envolvi naquele acidente. Mas se eu fiz as coisas, foi nessa outra realidade, nesse outro tempo. Aqui eu estou com as minhas escolhas e as possibilidades que elas geram.
Acho que é esse, aliás, o grande atrativo dos oráculos: permitem que a gente dê uma espiadinha nessas possibilidades de futuro, nos dando ferramentas para, quem sabe, escolhermos de modo a tentar ir para quando queremos. Acho que é por isso que o tarot e a astrologia fascinam tanto pessoas que escrevem: assim com o tarot e a astrologia, escrever é tentar vislumbrar outras possibilidades temporais.
Existem, inclusive, formas de se usar a literatura como um oráculo. A chamada bibliomancia consiste em abrir um livro ao acaso e ver o que dá. Pegar esse trecho aleatório de um livro e usar como uma fresta através da qual vislumbrar o tempo.
Mas eu penso que a própria poesia, por si só, já é uma espécie de oráculo. Afinal, ela transforma a língua (e a linguagem) de modo que aquilo que havia de linear, de prosaico, se abre e dá lugar alguma coisa outra. Podemos sonhar a utopia ou tecer uma relação erótica com o passado. Podemos parar o tempo, ou revivê-lo indefinidamente.
E é por essa capacidade da poesia de moldar o tempo que eu penso que ela é especialmente poderosa nas mãos de pessoas dissidentes. Podem parecer só palavras no papel, mas a partir do momento que abrimos frestas no tempo com a nossa língua, com a nossa imaginação, a partir do momento que alguma coisa desafia a linearidade das histórias que dizem que devemos seguir, outras realidades surgem, outras escolhas são possíveis.
Termino com um poema da poeta polonesa Wisława Szymborska,em que o tempo é uma personagem principal (em tradução de Regina Przybycien):
O terrorista, ele observa
A bomba explodirá no bar às treze e vinte.
Agora são apenas treze e dezesseis.
Alguns terão ainda tempo para entrar;
alguns, para sair.
O terrorista já está do outro lado da rua.
A distância o protege de qualquer perigo.
E, bom, é como assistir a um filme.
Uma mulher de casaco amarelo, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Jovens de jeans, eles conversam
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo, ele se salvou, sai de lambreta.
E aquele mais alto, ele entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
A moça ali, ela tem uma fita verde no cabelo.
Mas o ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Era tola o bastante para entrar, ou não?
Saberemos quando retirarem os corpos. Treze e dezenove.
Ninguém mais parece entrar.
Um careca obeso, no entanto, está saindo.
Procura algo nos bolsos e
às treze e dezenove e cinqüenta segundos
ele volta para pegar suas malditas luvas. São treze e vinte.
O tempo, como se arrasta
É agora.
Ainda não.
Sim, agora.
A bomba, ela explode.
Que texto bom de ler! Gosto especialmente da ideia de literatura feita a partir de obsessões. Tem uma coisa de ser impossível de escapar desse tipo de início de escrita que é muito intenso, eu acho. Tenho pensado um pouco nisso e adorei encontrar a ideia aqui 😊