Lagostas são crustáceos decápodes- ou seja, com cinco pares de pernas- marinhos, pertencentes à subordem Palinura. Essa subordem é caracterizada por antenas do segundo par muito longas e urópodes em forma de leque. São crustáceos grandes, podendo pesar mais de um quilo. São consumidas pelo ser humano, consideradas um alimento de luxo.
Para que um animal marinho seja considerado kasher, ou seja, ritualmente puro e portanto próprio para consumo de acordo com a tradição rabínica, é necessário que tenha barbatanas e escamas. Algo que, claramente, falta aos crustáceos como um todo. Existem, ainda, algumas regras menos claras sobre a proibição de invertebrados (que, curiosamente, excluem algumas espécies de gafanhoto).
Essas normas dietéticas estão tão entranhadas nas culturas judaicas que a língua iídiche sequer tem uma palavra para lagosta. Existem duas palavras algo obscuras, que a maioria des falantes não conhece, rak e homar, mas que na verdade são designações genéricas para qualquer crustáceo, podendo também nomear caranguejos, siris, camarões, etc. Foi só mais recentemente, provavelmente por volta dos anos 1960, que o iídiche estadunidense incorporou o vocábulo inglês lobster. Mas as lagostas, por si só, não existem em iídiche.
Não que isso tenha sido um problema ao longo da história. Atuavam a interdição religiosa-cultura e o fato de lagostas terem, há um bom tempo, um preço elevado e, apesar das mitologias antissemitas, boa parte dês judies ter sido muito pobre durante a maior parte da história.
Eu mesma só o fiz duas vezes na vida, uma há alguns anos quando minha mãe (que não se importa nem um pouco com as tradições) me visitou em Fortaleza e outra agora, como uma preparação para a escrita deste ensaio.Fiz isso de forma ritualizada, seguindo um roteiro previamente estabelecido, pensando no que a lagosta poderia me dizer. No que eu poderia aprender quebrando deliberadamente uma regra que foi estabelecida muitos e muitos séculos antes de eu nascer, pensando em como me relacionar com esse animal sem nome.
A lagosta aparece na carta da lua do tarot. Apesar de chamar a lagosta do baralho de Smith-Waite de caranguejo, Rachel Pollock nos diz que ela é um simbolismo para “os medos mais universais dentro do inconsciente coletivo, sentidos nas visões como demônios sem nome.”
É assim que a cultura mainstream enxerga as pessoas queer: coisas sem nome (é um homem? É uma mulher? O que é isso, afinal?) a serem temidas (precisamos proteger a família e as crianças, elus dizem). Somos esses demônios. Somos, então, as lagostas. As pessoas nos temem, as tradições não contemplam nossa existência e, no fim, não temos nem mesmo um nome.
A primeira vez que a palavra lezbianke, lésbica, em iídiche, foi impressa foi em um poema de Irena Klepfisz, publicado em 1990. O termo iídiche para queer, kvir ou kvirkeyt, demorou outros 30 anos (mais ou menos): é só em 2020 que o encontro, apesar de não ter sido capaz de traçar sua primeira aparição com precisão. Isso quer dizer que até muito recentemente eu era como a lagosta, um animal sem nome. E, mesmo agora, que ambes temos nomes, são nomes emprestados de outra língua.
Assim como as lagostas existem, não é como se nós, queers, não existíssemos: estamos neste mundo desde que as pessoas estão neste mundo. Somos parte integrante da humanidade. Nunca existiu e nunca existirá a espécie humana sem pessoas queer.
Nos negar um nome, então, parece uma estratégia deliberada, é um ato de guerra destinado a falhar. Não é, apesar disso, um ato sem consequências. Como a lagosta, passei muito tempo na profundeza escura, sem enxergar nada. Sequer tinha ciência de que eu precisava de um nome. Exatamente como queriam, eu achava apenas que devia temer aquelas coisas que eu percebia lá, no escuro, no abismo.
Mas, como a lagosta do tarot, que não fica para sempre na profundeza e vem, ao menos parcialmente, à superfície, também eu tive de o fazer. Não sei bem o motivo. Talvez a pressão e a treva fossem esmagadoras. Talvez só houvesse um qualquer impulso, uma necessidade de vir à tona. Mas, no fim, essas coisas que eu temia no escuro vieram à luz.
Hoje eu sei que Transparent é uma série problemática. O transfake, as acusações contra Jeffrey Tambor. Mas na época eu não sabia de nada, e o fato de ver, na tela, uma mulher trans judia que se relacionava com mulheres foi algo revelador. Se comecei a assistir rindo de como as situações ali era muito judaicas, logo eu me pegava pensando em quando eu tiver a idade da Maura Pfefferman e me assumir.
Nessa mesma época eu viajei para a Dinamarca, para um evento acadêmico, e no Museu de Copenhague, vi uma exposição da artista Ovartaci. Ela era uma pintora trans que, depois de passar um período na América do Sul e tomar ayahuasca, passou a ter visões com figuras espectrais de aspecto felino. E passou a pintá-las. De volta à Dinamarca, passou a vida num hospital psiquiátrico, em parte por afirmar seu gênero. Ovartaci quer dizer algo como ‘louca-chefe’.
Pouco depois de voltar, tomei algumas gramas de Psilocybe cubensis, e foi a gota d’água: tive de dar algum nome para isso. Não foi fácil, mesmo chapada como eu estava. Porque, afinal, primeiro eu tive de descobrir os nomes para depois poder adotá-los. Na época, eu ainda tinha uma visão binária das coisas e achava que se não fosse um homem, tudo o que eu poderia proferir era ‘eu sou uma mulher’, e foi o que eu fiz.
Com o passar do tempo descobri (tive de descobrir) que diferentes partes poderiam coexistir, que identidades não são binárias e muito menos monólitos, mas quebra-cabeças imperfeitos, nos quais muitas vezes as coisas não se encaixam perfeitamente, mas se sobrepõem. Eu fui descobrindo que, assim como a lagosta, essas coisas que eu descobri em mim não são novas. Só faltava um nome. Que mesmo na Torah, por exemplo, existem pessoas cujo gênero borra as linhas supostamente rígidas entre masculino e feminino e relacionamentos de um amor mais-que-fraterno entre pessoas do mesmo gênero.
Waite escreve que a lagosta nunca chega a sair completamente da água, sempre escorrega e submerge novamente. A carta da lua é uma carta de ‘selvageria e pavorosa excitação’, segundo Pollack e “Se, através da preparação e da simples coragem, aceitamos as coisas selvagens trazidas à tona pela mais profunda imaginação, então a Lua traz paz, os pavores cessam e a imaginação nos leva de volta, enriquecides com suas maravilhas.”
Algumes historiadories do tarot, que consideram o tarot de Marselha, em especial a versão de Jean Noblet, datada de mais ou menos 1650, repleto de simbolismo judaico escondido. Ês partidáries dessa interpretação defendem que a carta da lua fala sobre o Pessach, a páscoa judaica, que comemora a liberação e fuga des judies de sob o julgo do Faraó. Incluída aí estão as 10 pragas que Moishe Rabeniu convoca sobre o Egito, inclusive a praga dos gafanhotos.Langosta, nos dizem, em espanhol e francês antigos significa tanto lagosta quanto gafanhoto.
Destruição, imaginação e coragem. É isso, ser um demônio sem nome. Finalizo com um poema de Tatiana Nascimento, que sumariza bem a ideia:
nós vamos destruir tudo que você ama
e tudo que c chama “amor”
nós vamos destruir
porque c chama “amor à pátria”
o que é racismo
c chama “amor a deus”
o que é fundamentalismo
c chama “amor pela família”
o que é sexismo homofóbico y
c chama transfobia de “amor à natureza”
c chama de “amor pela segurança”
o que é militarismo
y o capitalismo
c chama de “amor pelo trabalho”
o que c chama de “amor à humanidade”
é especismo, y esse seu “amor pela Palavra”
na real é só um caso histórico de má-tradução — que
conveninente, chamar deus de “ele”, mas se
liga: nós somos seu apocalipse
cuíer. y o que c chama de
“amor pela liberdade”,
“pela justiça”, toda
essa sua ideia de “civilização” é
assassinato, é genocídio,
quer matar tudo
que ri, que goza, que dança,
quer matar a gente.
mas a gente vinga
que nem semente daninha:
a gente sobre
vive!
tá vendo? já começou!
sente a pulsação vibrando
o chão: é o beat do nosso coração!
porque a gente, que você amaldiçoa
em nome do seu amor doentio
normativo,
segregador,
a gente que é amante,
a gente é que vive y espalha
amor.
que delicia de leitura. reverberou com a última que escrevi também sobre o poema ter muitos nomes - característica do que escapa ao humano. e ainda nos nomeando, vamos fazendo para seguir escapando.