Hoje quero continuar a escrever sobre a dificuldade de escrever. Dessa vez sobre uma coisa que me pega em lugares mais pessoais, que é a dificuldade de escrever poesia. Desde que escrevi os últimos poemas que incluí em ‘na língua calcinada’, eu tenho não só escrito muito pouco, como tenho tido algumas dificuldades com a minha escrita. Parece que falta algo. Que ela não chega mais em certos lugares que chegava antes. Que já foi melhor.
A minha poesia é muito pessoal. Às vezes eu falo sobre coisas da física, sobre catástrofes históricas e sobre personagens míticos ou rituais religiosos, mas é tudo uma desculpa pra escrever, no fim, sobre coisas profundamente pessoais. E eu acho que pode ser justamente aí que mora a dificuldade.
Não estou aqui para me expor, mas minha vida foi uma montanha-russa da pandemia pra cá. Além de editora e poeta, eu sou médica, eu trabalhei na linha de frente, e foi aquela coisa toda de acompanhar o drama e as mortes em primeira mão. Eu lembro de sessões de terapia, no meio disso tudo, em que eu não conseguia falar nada. Algumas eu chorava por minutos, outras nem isso. Depois disso minha vida pessoal e relacional explodiu, com términos, apaixonamentos e coisas piores.
Sobrou muito pouco da minha saúde mental depois disso. De mais ou menos dois anos pra cá as coisas tem mudado e eu tenho melhorado, mas isso veio graças a uma série de mudanças na minha vida, na minha postura ante ao mundo e a mim mesma. É mais ou menos o tempo que terminei de escrever os poemas do livro. É mais ou menos o tempo que tem sido muito difícil escrever.
A Ingeborg Bachmann certa vez disse que ‘keine neue Welt ohne neue Sprache’- ‘não há mundo novo sem uma nova língua’. Eu acho que é mais ou menos por aí. Estou tentando inaugurar um mundo novo- um em que seja possível viver- e estou procurando uma nova língua na qual me expressar. Não no sentido de um idioma- o ídiche e o português tem me servido muito bem, mas de um modo de funcionamento da linguagem. Um jeito de escrever poesia com o qual, ao mesmo tempo, eu me identifique e possa expressar coisas até então inéditas na minha vida.
Eu sinto que esse período de dificuldade para escrever, de não gostar muito das coisas que eu tenho escrito, é na verdade muito importante. Funciona como tentativa e erro, até o momento, muito mais erro. Imagino que, em algum momento, vá dar certo.
Uma coisa importante nesse processo é saber que eu não preciso fazer isso às cegas. Um hábito que eu andei negligenciando, em certa medida, é o da leitura de poesia. Eu passei bastante tempo, nos últimos meses, praticamente só lendo o que a demonia me demandava. Foram ótimas leituras, sensacionais (inclusive recomendo), mas eram trabalho. No período em que escrevi ‘na língua calcinada’, eu lia muito mais, em especial muito mais poesia. Acho muito difícil escrever boa poesia sem ler poesia. Felizmente é um hábito que estou conseguindo retomar. Ingeborg Bachmann, Rose Ausländer, Egana Djabbarova, Tal Nizán, Marina Skalova, Ewa Dąbrowska e Izabela Filipiak são algumas das poetas que tenho lido ultimamente, e com as quais acho que talvez encontre pontos em comum a partir dos quais eu possa continuar a escrever.
Ainda que demore. Ainda que seja difícil.